Inegavelmente, sou, assim como tu, que ora me lês, um ser privilegiado. Sou nativo deste torrão brasileiro, onde se fala português - o vernáculo do magistral poeta lusitano Fernando Pessoa. Não fui merecedor de nascer em solo pessoano, tampouco digno de ter o grande bardo por conterrâneo, cá em pindorama, mas os deuses, neste cenário de impossibilidades, foram-me exageradamente generosos ao cuspirem-me no Brasil, nação que dialoga com Portugal sem traduções. E a possibilidade de ler Pessoa sem o intermédio nocivo e mutilador das traduções é uma dádiva! Porque a irmã caçula do Latim, ou, como se referira Olavo Bilac à língua portuguesa, a "última flor do lácio", possui meandros quase inacessíveis, os quais, manuseados cirurgicamente por Pessoa, desautorizam toda qualidade de traduções, sob pena de deturpações criminosas e decapitações depauperantes. Shakespeare, Baudelaire e Dante Alighieri que me perdoem, mas ler Pessoa no original é um prazer único e incomparável - prazer que experimento quase diariamente.
Abaixo, uma pequena amostra de Pessoa (sem tradução):
DOBRE
(1913)
Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão
Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.
Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.
Abaixo, uma pequena amostra de Pessoa (sem tradução):
DOBRE
(1913)
Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão
Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.
Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.