sábado, 26 de setembro de 2009

RELEITURAS

Dediquei-me, na semana que passou, à releitura do intrigante A Morte de Ivan Ilitch, do grande escritor russo Leon Tolstoi, obra de maturidade do autor, considerada por muitos críticos como a novela mais perfeita da literatura universal. E como é bom reler algo de que gostamos. A releitura de uma obra já apreciada revela-nos nuances e sabores anteriormente não experimentados, mas que sempre estiveram ali, bem ao alcance do nosso paladar que, talvez, noutros tempos, não se encontrava devidamente apurado para tais degustações. Noutros tempos, outros também éramos nós, e conferíamos distintas interpretações ao que sentíamos.


Li-o, pela primeira vez, a exatos dez anos, na oportunidade em que o adquiri, interpretando-o da maneira que meus dez anos ainda não vividos me permitiram fazer. Hoje, uma década depois, a mesma intrigante e angustiante história de vida do burocrático magistrado russo soou-me noutro tom, mais denso e mais completo, e impregnada de uma aflição desconcertante e purificadora.

Identifiquei, na figura do protagonista, o retrato fiel de muitas histórias de vida que, assim como a de Ivan Ilitch, são "das mais simples, das mais comuns e, portanto, das mais terríveis".

A meu ver, uma das passagens mais instigantes da novela acontece quando Ivan Ilitch, enfermo, em seu leito de dor e sofrimento, ouve de sua esposa - que há muito anseia de maneira indisfarçável por sua morte, dado o estorvo que se tornara para toda a família - que tudo o que fazia por ele - os cuidados diários, as preocupações, a busca incessante por médicos especialistas etc. -, fazia-o, em última instância, por si mesma. Tal afirmação deveria soar tão inverossímil e absurda que qualquer ouvinte, inclusive o marido, não faria diferente senão interpretá-la ao avesso. Mas a nitidez com que Ivan Ilitch percebia tudo isso fazia-o sofrer não só as dores da carne, que por si só já eram insuportáveis, mas, também, as terríveis dores da alma.

O autor, então, escancara, por meio da sua literatura, a purulenta ferida que todos tentamos ocultar sob o emplastro da falsidade: a natureza egoísta, que nos é inerente e essencial, mas que negamos peremptoriamente.



"Tudo que ela fazia para ele era inteiramente para si mesma, e ela costumava dizer a ele que estava fazendo por ela mesma o que de fato estava fazendo por ela mesma, como se isso fosse tão inacreditável que só pudesse significar o contrário."


Reler Tolstoi é, e sempre será, redescobrir-se (e minha estante está repleta de redescobertas).

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