sábado, 5 de dezembro de 2009

CARNE PODRE QUEIMADA

Hoje eu quero, subitamente, sair de casa - tão subitamente de me espantar comigo mesmo, de me estranhar, mas dar de ombros ao espanto e ao estranhamento e seguir. E o farei pela porta da frente, como nunca o fizera até então. Sempre escapuli pela submissa e taciturna porta dos fundos, o imponente umbral da vassalagem. Hei de sair batendo violentamente a porta da frente - nestes momentos, todo alarde é surdo -, e sem a prosaica preocupação de passar-lhe a chave.

Seguirei em marcha firme, de pés descalços, investindo obstinadamente pelas ruas, ruelas e avenidas da cidade. Darei preferência às não asfaltadas e sem passeios públicos, de pedras pontiagudas, irregulares e contundentes. Quero sentir a cidade em minha carne, dilacerando as solas dos meus pés, fazendo-os sangrar. Quero deixar pegadas de sangue para que, por medo ou por asco, ninguém as queira seguir, pois não conduzirão a nada que não à patética figura de um andarilho que agoniza na alma e anseia purificar-se na dor.

E no retorno, aí sim, deslizarei por sobre o asfalto. Asfalto quente, incandescente, próprio das candentes tardes de dezembro. E o betume abrasador há de cauterizar as feridas abertas - únicas e fiéis companheiras nesta jornada autoflagelante. Irracional, talvez, porém inequivocamente necessária.

Ao chegar, chutarei violentamente a porta da frente de casa e, na maior sem-cerimônia, prostrar-me-ei ao chão da sala. O abjeto aspecto de cão sarnoso e pestilento abriga, então, uma alma sã.

A fedentina de carne podre queimada vem tão-somente dos meus pés, não mais de mim.

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