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domingo, 27 de março de 2016

MEUS DIAS

Cá dentro, o silêncio e a solidão
Lá fora, os ruídos alheios
Em ritmos, tons e timbres variados
Os universitários vibram suas vozes
Que me chegam em uníssono pela sacada
Os vizinhos? Não os ouço
Por vezes, julgo não haver nenhum
Quando falam, é pelo motor de seus carros
Pelos incessantes bateres de porta
E pelo ranger áspero das roldanas dos portões eletrônicos
Acionados a distância
Tal qual se me apresentam tais vizinhos – a distância

Cá dentro, eu os fico escutando com curiosidade juvenil
E percebo-me só e mal acompanhado
Neste asséptico cortiço, sou só e somos muitos
Eu, os motores, os portões e portas
A TV, o telejornal, a telenovela
A minha cerveja sem álcool, meus comprimidos
Os vizinhos tácitos e remotos
E o sono, lenitivo que me priva da solidão por algumas horas

Cá dentro, existe uma escada tagarela com corrimão de madeira
Que dialoga com os dois andares da casa sem tomar partido
Contudo, quando estou nela, a infeliz se cala
Ainda assim, eu puxo uma conversa trivial
Pra ouvir o silêncio de sua resposta
E a sua fria indiferença me conforta
Se estou descendo ou subindo
Por alguns degraus, a solidão é morta

Cá dentro, há o quarto da minha filha
Que dá de porta com o meu
Quando ela me visita, é meu cômodo dileto
É um oásis de alegria
Na sua ausência, a solidão nele se aloja
E, dali, põe-se a me espreitar
Num silêncio de expectativa de um não sei quê que nunca vem
Tranco a porta do meu quarto
Aumento o volume da TV
A telenovela retumba pela casa
Bebo outra cerveja sem álcool
Engulo meus comprimidos
Mas ela se mantém em inabalável vigília
Seu escárnio atravessa paredes e ignora portas trancadas
Expulsá-la dali? Só mesmo minha filha!
Mas, tão só no enquanto de suas visitas
Pois que, sai minha filha, solidão retorna
E se instala com a insolência de sempre
E com a obstinação de nunca

Cá dentro, bem dentro, mesmo
Há um coração batendo em descompasso
Há uma cabeça que nada entendeu – e já desistiu de fazê-lo
Há uma alma inquieta e solitária

Lá fora, a explosão dos motores
O ferro contra ferro dos portões eletrônicos
O alarido enfadonho dos acadêmicos
As portas esbofeteando o ar
Os vizinhos silenciosos feito a lua
E o tempo, senhor de tudo

Meu tempo é espera
Enquanto espero
Há esperança
De que, cá dentro
Bem dentro, mesmo
Tudo melhore

Porque, lá fora
Tudo só piora.

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