sexta-feira, 28 de agosto de 2009

POSTAGEM ÓBVIA


Por que será que algumas pessoas insistem em conferir ao óbvio a indelével qualidade de absoluto? Acreditem, o óbvio é, também, relativo! E em sendo relativo, é plenamente discutível e contestável.


O óbvio só é óbvio no seu próprio contexto, aquele único contexto que lhe acolherá como óbvio e, simultaneamente, ratifica-lo-á como tal. Fora dele, não passa de partícula anômala, verbete em idioma estranho carente de tradução para o vernáculo, um ser órfão de sentido. Decifrado e contextualizado, permite-se ao óbvio, então, ostentar toda a sua incontestabilidade patente.

Hoje, é-nos óbvio que o mar é salgado, mas não o sabíamos assim até pormos-lhe a língua.

Homenageio o intrigante verbete com um acanhado aforismo que, num dos meus reincidentes momentos de introspecção, foi-me sussurrado ao ouvido:

"O óbvio só é óbvio se contextualizado."

Isso tudo não é óbvio demais?

P. S.: rabiscar tais obviedades deu-me sede. Vou tomar uma cerveja, é óbvio! Porque água, pra mim, é remédio.

domingo, 2 de agosto de 2009

VILLA



Confesso-lhes, não sem uma pontinha de vergonha, que sempre achei a música clássica um tanto monótona, enfadonha (olha mais uma heresia aí!). Considerava-a passível de ser admirada e plenamente saboreada tão-somente por iniciados no campo musical erudito. Quando muito, chamavam-me as atenções o belíssimo Bolero, de Maurice Ravel, assim como a 5ª Sinfonia de Beethoven. Esta, de tão conhecida e executada (é, hoje, uma das sinfonias mais executadas do mundo), amiúde vem dando suas resvaladinhas na seara popular - e com muita naturalidade. Minha relação com a música erudita não ia além deste distante compadrio.

Um dia - abençoado dia! - descobri um compositor brasileiro, de cujo nome eu muito já ouvira falar, sem, no entanto, dar-lhe a devida atenção: Heitor Villa-Lobos. Foi-me uma descoberta mágica! Santo de casa faz milagre, sim! E a música de Villa-Lobos é um magnífico milagre.

Naquele dia santo, meus tímpanos foram tocados por uma canção sui generis do maestro Villa-Lobos: O Trenzinho do Caipira, 4º movimento da Bachianas Brasileiras* nº 2.

Emocionei-me ao escutar tão bela e envolvente composição. Permiti-a que me invadisse e, de pronto, descortinou-se à minha frente o pitoresco cenário. Estou - e chego a duvidar - vendo e vivendo o trem na estação. Da inércia, põe-se lentamente em movimento o comboio. Sua locomotiva esgarçando-se e se atritando no ferro-com-ferro e seu apito a gritar "abram alas". A velocidade aumenta enquanto o trenzinho vai sumindo na lonjura, rumo à próxima estação. E vai, num ritmo alucinante, atravessando campos, cortando vales, furando montanhas. Aquela serpente de ferro e fumaça segue a sua inevitável sorte de metal, num desvario poético e mágico. Até que, por fim, novamente o grito lancinante do apito, agora anunciando o fim da viagem. A velocidade vai diminuindo e o trenzinho, cansado e ofegante, vai parando, parando... e pára. O ferro em repouso arrefece-se, emitindo seus estalidos de dilatação e contração. O trem compôs o seu poema.

Nada mais a dizer. Ouçam.





*Bachianas brasileiras é uma série de nove composições de Heitor Villa-Lobos escritas entre 1930 e 1945. Nesse conjunto, escrito para formações diversas, Villa-Lobos fundiu material folclórico brasileiro (em especial a música sertaneja) às formas pré-clássicas no estilo de Bach, intencionando construir uma versão brasileira dos Concertos de Brandemburgo. Esta homenagem a Bach também foi feita por compositores contemporâneos como Stravinski. Todos os movimentos das Bachianas, inclusive, receberam dois títulos: um bachiano, outro brasileiro.