[O texto que
segue não passa de
uma mal-acabada obra
de ficção, embora poderia
muito bem ser baseado
em uma história real
- como a sua ou
a minha.]
Há um abominável
travesti atormentando a minha
vida pacata.
Calma, lá!
O travesti a que me
refiro não é, em absoluto,
aquele que o inconsciente
coletivo automaticamente ordena que
se traga à baila sempre
que a palavra travesti
é mencionada. Não falo
do transexual, que se
traveste, não para ocultar-se, mas
para revelar-se. O travesti de que
quero falar-lhes não é, de maneira
alguma, aquele que se
transforma para libertar-se, para revelar
o gênero da sua alma,
para desnudar-se da pesada armadura
de que o acaso lhe
proveu e que a sociedade hipócrita
obriga-lhe a ostentar orgulhosamente.
Não. Jamais. Este
travesti, relegado à vida
noturna e aos salões
de beleza e segregado pelo preconceito,
é digno de todo o meu
respeito e admiração.
Respeito-o e o admiro pela coragem
de ser o que se sente, na
contra-mão de um mundo
hostil e intolerante.
O abominável travesti
que vem infernizando a minha
vida é um ser
bem distinto do acima
descrito, e não é digno
sequer de lavar-lhe os pés.
Possui ares de normalidade e afabilidade,
mas é maquiavélico e vil.
Traveste-se de bom-moço, bem-humorado e
bem-resolvido, angariando, assim, a simpatia
daqueles menos afeitos
a sutilidades.
Mas sutilidades são
a minha especialidade!
A camuflagem é quase perfeita,
admito, mas não
resiste ao meu exame rigoroso.
Sejamos mais claros.
O abominável travesti que
vem amofinando o meu cotidiano serviu-se,
em um dado
momento, de uma pequena
portinhola entreaberta
no quadrante mais frágil
da minha vida, para
introduzir-se em meu dia-a-dia
de forma devastadora, porém silenciosa
- como um câncer.
E, nesta condição, este
ser ardiloso, oligofrênico
e manipulador vem obtendo relativo sucesso
no seu empreendimento.
Sua estratégia: o afago
em público e, na intimidade,
a punhalada.
Fico pensando, maquinando, engendrando, tentando descobrir
um jeito de enfrentar
um ser tão
abjeto e poderoso. Um
indivíduo cuja falsidade
é capaz de promover ações
que são, a olho
nu, coalhadas de altruísmo
e desprendimento, mas
sucumbem pateticamente a uma observação minimamente
apurada. Atitudes, essas, que
se apresentam sãs e equilibradas, mas que,
de contra-efeito, rendem-me estocadas silenciosas
e profundas no baço. Como
reagir a baixezas
de tal jaez sem
me fazer baixo,
também? Como enfrentar
reiterados golpes do mais
corrosivo deboche, do
mais contundente cinismo,
desferidos com tal precisão
que um mísero
esboço de reação da minha
parte condenar-me-ia de imediato
perante qualquer sorte
de circunstantes?
E o escárnio rompe as fronteiras
da criatura que o fomenta.
Esse ser manipulador amealhou um
vasto séquito de imbecis que
o auxiliam, vez por outra,
no trabalho sujo. Então,
há momentos em que
sou atacado por todas
as frentes, sem chance
de reação. Mas o comandante
da manobra é facilmente identificável, pois
o ataque é covarde e infame,
marcas indeléveis do abominável
travesti. Seu talento
para o ludibrio é tal que,
mesmo nos círculos
supostamente meus, sua
seita já possui seguidores,
seu fiéis escudeiros.
Deus!, como
travar confronto com
um ser tão
diabólico, que no afã
de encobrir a sua vileza
patente, chega ao requinte
de cogitar pedir-me desculpas, sem
sequer ter reconhecido o seu
erro. E que, supostamente
contagiado por este inusitado
- e fingido - sentimento de contrição, continua, mesmo assim,
recorrendo insistentemente às mesmas pulhices
e maledicências. Fina
falsidade! Quem se desculpa
sem reconhecer que
errou não almeja o perdão,
mas sim a elevação
de caráter que lhe
seria creditada por conta de um
desculpar-se verdadeiramente sincero. Pura
cena para a platéia
incauta aplaudir de pé!
Para a maioria
das pessoas de seu convívio,
essa criatura abominável não
passa de um ser
ingênuo e imaturo - e não
mau -, o que
justificaria as calhordices que protagoniza - ou
as explicaria, ao menos. E essa condescendência
de todos é que alimenta
o monstro. Mas quem
percebe isso? No meu ponto
de vista, ela é a maldade
travestida de inocência. A aura
de bondade é o mais perfeito
e sutil disfarce desse abominável
travesti que, bem
paramentado, invade a minha
intimidade e secreta sua
peçonha com um
cinismo assustador.
Como combater tudo
isso, se não consigo
sequer me defender?
Talvez um bom
começo seja fazer o que
cá estou fazendo: contando-lhes tudo
e fazendo-o saber que sei.
Concordo, talvez o melhor fosse ignorá-lo, mas aquela bendita
portinhola permanece entreaberta
e dando ingresso à minha
área indefesa, e enquanto
eu não for capaz
de aferrolhá-la, tenho de ir sobrevivendo. As energias
estão se esvaindo, juntamente com
a paciência. Mas sempre
haverá energia para se perder
a paciência.
Se eu pudesse dar-lhe um
conselho, diria: Abominável travesti,
mire-se no exemplo dos travestis, digamos, ortodoxos: eles não
usam máscaras e são a
mais autêntica e corajosa
manifestação da verdade. Enquanto
você, na solidão do espelho,
não reconhece o seu rosto
nu. Um pouquinho de dignidade
lhe fará bem - e a mim
também.
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