sábado, 25 de fevereiro de 2012

O ABOMINÁVEL TRAVESTI


[O texto que segue não passa de uma mal-acabada obra de ficção, embora poderia muito bem ser baseado em uma história real - como a sua ou a minha.]

Há um abominável travesti atormentando a minha vida pacata.

Calma, lá! O travesti a que me refiro não é, em absoluto, aquele que o inconsciente coletivo automaticamente ordena que se traga à baila sempre que a palavra travesti é mencionada. Não falo do transexual, que se traveste, não para ocultar-se, mas para revelar-se. O travesti de que quero falar-lhes não é, de maneira alguma, aquele que se transforma para libertar-se, para revelar o gênero da sua alma, para desnudar-se da pesada armadura de que o acaso lhe proveu e que a sociedade hipócrita obriga-lhe a ostentar orgulhosamente. Não. Jamais. Este travesti, relegado à vida noturna e aos salões de beleza e segregado pelo preconceito, é digno de todo o meu respeito e admiração. Respeito-o e o admiro pela coragem de ser o que se sente, na contra-mão de um mundo hostil e intolerante.

O abominável travesti que vem infernizando a minha vida é um ser bem distinto do acima descrito, e não é digno sequer de lavar-lhe os pés. Possui ares de normalidade e afabilidade, mas é maquiavélico e vil. Traveste-se de bom-moço, bem-humorado e bem-resolvido, angariando, assim, a simpatia daqueles menos afeitos a sutilidades.

Mas sutilidades são a minha especialidade! A camuflagem é quase perfeita, admito, mas não resiste ao meu exame rigoroso.

Sejamos mais claros. O abominável travesti que vem amofinando o meu cotidiano serviu-se, em um dado momento, de uma pequena portinhola entreaberta no quadrante mais frágil da minha vida, para introduzir-se em meu dia-a-dia de forma devastadora, porém silenciosa - como um câncer. E, nesta condição, este ser ardiloso, oligofrênico e manipulador vem obtendo relativo sucesso no seu empreendimento. Sua estratégia: o afago em público e, na intimidade, a punhalada.

Fico pensando, maquinando, engendrando, tentando descobrir um jeito de enfrentar um ser tão abjeto e poderoso. Um indivíduo cuja falsidade é capaz de promover ações que são, a olho nu, coalhadas de altruísmo e desprendimento, mas sucumbem pateticamente a uma observação minimamente apurada. Atitudes, essas, que se apresentam sãs e equilibradas, mas que, de contra-efeito, rendem-me estocadas silenciosas e profundas no baço. Como reagir a baixezas de tal jaez sem me fazer baixo, também? Como enfrentar reiterados golpes do mais corrosivo deboche, do mais contundente cinismo, desferidos com tal precisão que um mísero esboço de reação da minha parte condenar-me-ia de imediato perante qualquer sorte de circunstantes?

E o escárnio rompe as fronteiras da criatura que o fomenta. Esse ser manipulador amealhou um vasto séquito de imbecis que o auxiliam, vez por outra, no trabalho sujo. Então, há momentos em que sou atacado por todas as frentes, sem chance de reação. Mas o comandante da manobra é facilmente identificável, pois o ataque é covarde e infame, marcas indeléveis do abominável travesti. Seu talento para o ludibrio é tal que, mesmo nos círculos supostamente meus, sua seita já possui seguidores, seu fiéis escudeiros.

Deus!, como travar confronto com um ser tão diabólico, que no afã de encobrir a sua vileza patente, chega ao requinte de cogitar pedir-me desculpas, sem sequer ter reconhecido o seu erro. E que, supostamente contagiado por este inusitado - e fingido - sentimento de contrição, continua, mesmo assim, recorrendo insistentemente às mesmas pulhices e maledicências. Fina falsidade! Quem se desculpa sem reconhecer que errou não almeja o perdão, mas sim a elevação de caráter que lhe seria creditada por conta de um desculpar-se verdadeiramente sincero. Pura cena para a platéia incauta aplaudir de pé!

Para a maioria das pessoas de seu convívio, essa criatura abominável não passa de um ser ingênuo e imaturo - e não mau -, o que justificaria as calhordices que protagoniza - ou as explicaria, ao menos. E essa condescendência de todos é que alimenta o monstro. Mas quem percebe isso? No meu ponto de vista, ela é a maldade travestida de inocência. A aura de bondade é o mais perfeito e sutil disfarce desse abominável travesti que, bem paramentado, invade a minha intimidade e secreta sua peçonha com um cinismo assustador.

Como combater tudo isso, se não consigo sequer me defender? Talvez um bom começo seja fazer o que cá estou fazendo: contando-lhes tudo e fazendo-o saber que sei.

Concordo, talvez o melhor fosse ignorá-lo, mas aquela bendita portinhola permanece entreaberta e dando ingresso à minha área indefesa, e enquanto eu não for capaz de aferrolhá-la, tenho de ir sobrevivendo. As energias estão se esvaindo, juntamente com a paciência. Mas sempre haverá energia para se perder a paciência.

Se eu pudesse dar-lhe um conselho, diria: Abominável travesti, mire-se no exemplo dos travestis, digamos, ortodoxos: eles não usam máscaras e são a mais autêntica e corajosa manifestação da verdade. Enquanto você, na solidão do espelho, não reconhece o seu rosto nu. Um pouquinho de dignidade lhe fará bem - e a mim também.

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