Luiz Tatit é um cidadão múltiplo.
Graduado em Letras e Música, mestre, doutor e professor titular do Departamento
de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo e, por fim, como se não bastasse, músico e cancionista
excepcional.
E é à leitura do livro desse
complexo paulistano aí de cima que venho me dedicando esta semana: Todos Entoam
– Ensaios, Conversas e Canções. Publicada em 2007, a obra é um deleite para os
que amam música e desejam conhecê-la mais a fundo. Entre tantas boas histórias
contadas pelo autor ao sabor de suas reminiscências, deparo-me com uma
intrigante referência a versos do poeta piauiense Torquato Neto:
Estou pensando
No mistério das letras de música
Tão frágeis quando escritas
E tão forte quando cantadas
[...]
A palavra-canto
É outra coisa
Fez-se, então, a luz! Há muito
que eu pressentia, sem entender bem o porquê, que a letra e a melodia são
irremediavelmente indissociáveis na canção, mas nunca havia encontrado algo
mais concreto que referendasse essa minha suspeita. Uma, sem a outra, intuía
eu, tornava-se pobre, não expressando de pleno o que, juntas, sob a forma de
canção, fá-lo-iam por completo.
Por várias vezes eu, por amor à
poesia, destacava a letra das canções para disseca-la, extrair o seu valor
poético, que me parecia tão forte na canção entoada, mas baldadamente não o
encontrava. Suprimindo a melodia, a letra soava-me menor, quase pueril.
Indagava-me “cadê a poesia que tava aqui”?
O mesmo acontecia ao apartar da
canção a sua letra para dedicar-me à melodia isoladamente. Sobrevém, então, uma
sonoridade estranhamente esmaecida, sem o vigor e o alcance anteriores.
Eis que chega, então, o senhor
Luiz Tatit com o seu Todos Entoam, e me resgata do breu da ignorância. O autor
nos apresenta então o conceito de canção, fazendo a necessária diferenciação
entre esta, a música e a poesia.
Segundo Tatit, canção é letra e
melodia. Na supressão de um desses fatores, inexiste o produto canção.
Diferentemente, na música e na poesia, linguagens autônomas que encerram em si
mesmas todo o sentido que tencionam exprimir, não há essa relação de
interdependência. Essa coadjuvação recíproca é vital para a sobrevivência da
canção.
Luiz Tatit cita o poeta-pensador
José Lino Grünewald: “Verifica-se, então, um fato peculiar: versos, que lidos
ou declamados, são simplórios, ganham novos efeitos de acordo com a faixa
musical e o modo de cantá-los.”
O verso, segundo a idéia de
Grünewald, é, digamos, vitaminado pela força da melodia e pela maneira de
entoá-lo.
Celso Favareto, de cuja citação o
autor também se vale, faz a seguinte observação, que, a meu ver, é a mais
elucidativa: “No canto [canção] brilham significações que provêm da fricção da
língua com a voz, numa atividade em que a melodia trabalha a língua ocupando
suas diferenças dizendo o que ela não diz. [...] Pela entoação, inflexões e
gestos vocais o canto intensifica o desejo, ressaltando também o ritual da
música, manifestado na dança e no sexo.”
A “fricção da língua com a voz”.
Aí está, no meu ponto de vista, o nervo exposto desta ladainha toda a que eu
vos exponho. A letra marcha no dorso da melodia – e vice-versa. Dilema
decifrado. Estou salvo!
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