terça-feira, 3 de junho de 2003

Quem faz boa música gosta de boa música. De forma alguma poderia ser diferente. E não é surpresa para mim descobrir que os componentes da banda Los Hermanos são fãs de Chico Buarque e sua obra, e que têm particular admiração pelo álbum Construção - que, na minha opinião, é a obra-prima do Chico. Diz-me o que escutas e eu te direi quem és. A influência não poderia ser melhor.

E por falar em Chico e no seu disco Construção, de 1971, transcrevo-lhes a primeira faixa deste álbum fantástico, chamada Deus lhe Pague. Esta canção/poesia revela todo o asco que o compositor nutria pelo regime político de então - que nos impingiu os anos mais negros da nossa história sob o autoritarismo ferrenho do general Médici - onde, de forma irônica, o compositor agradece a um "benfeitor" oculto por tudo que é bom e que deveria tacitamente nos pertencer, e também por tudo que é inequivocadamente ruim (aqui reside o ápice da ironia na composição), mas que nos é imposto de forma arbitrária.

O ritmo da música é extremamente tenso e angustiante do princípio ao fim. E, na medida em que os versos vão sendo pronunciados, o ritmo da canção torna-se mais intenso e acelerado e o som vai ficando gradualmente mais denso e sufocante, o que nos causa a nítida impressão de estarmos no olho de um furacão de desesperos, do qual parece impossível escapar, salvo através da morte, como encerra o último verso antes do refrão final. É música para sentir, não apenas ouvir. É coisa de gênio!

Deus lhe Pague (Chico Buarque)

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo estamos aí
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e o samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo, que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

Pela cachaça, de graça, que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras pra nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague.

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