terça-feira, 6 de abril de 2004

PRA NÃO DIZER QUE NÃO "LEMBREI" DAS FLORES

Domingo à tarde, a TVE - nau que resiste bravamente à tormenta no inóspito mar da mediocridade televisiva - transmitiu um especial que relembrava aquelas magistrais canções compostas e cantadas heroicamente nos saudosos festivais dos anos 60 e 70, em meio ao fogo cruzado da ditadura militar. Sob o lamentável jugo da bota emergiram verdadeiras obras-primas de Chico, Caetano, Gil, Vandré, Tom, Vinicius, Paulinho da Viola, Milton, entre outros, que, neste show, chamado Pra Não Dizer que Não Lembrei das Flores - uma alusão à canção de Vandré, de 68 -, foram interpretadas por artistas da nova safra brasileira, jovens cantores que, bem ou mal, esmeraram-se numa louvável iniciativa de fazer um resgate e, de certa forma, uma releitura daquelas canções que foram entoadas por todo o Brasil e por todos os brasileiros como se fossem hinos oficiais de oposição à opressão vigente.

Tudo bem. Os caras são jovens e muitíssimo bem-intencionados, mas, lamentavelmente, não chegam aos pés daquela geração de gigantes da MPB revelada nos festivais da época. A desafinação foi a tônica do espetáculo. Contorci-me no sofá ao escutar Jairzinho (filho do inigualável Jair Rodrigues, que defendeu de forma brilhante e emocionada a Disparada, de Vandré e Théo de Barros, mas isso já é outra história) e Paulinho Moska assassinarem sem dó nem piedade a belíssima Sinal Fechado, do Paulinho da Viola. Parecia outra música, tal foi a desafinação e as firulas deturpantes que ambos teimavam em improvisar! O Cordel do Fogo Encantado, literalmente, gritou a melodiosa Porta Estandarte, do Vandré. Gritou, não cantou. Abdicou imoralmente de toda e qualquer melodia, esgoelando-se e saltitando de lado a lado do palco, desvirtuando toda a beleza da canção do Vandré.

O esquecimento de letra foi a granel! Letras poéticas e de complexidades formidáveis não foram muito bem digeridas pela rapaziada. Chico César - considerado por muitos o ícone da nova MPB - até que cantou direitinho a ousada e corajosa Cálice (cale-se!), de Chico e Gil, com voz e violão tocado por ele mesmo, mas trocou versos de lugar no finalzinho da música. O Biquíni Cavadão atirou-se de cabeça na empolgante Disparada e, como já era esperado, também andou trocando algumas passagens dessa que é considerada por muitos a campeã das campeãs de todos os festivais, tal é a sua qualidade musical e seu viés político-social. Teve um, lá - desconhecido para este que escreve estas mal-traçadas-, que repetiu umas quatro vezes a mesma estrofe da animada e encorajadora E Vamos à Luta, do saudoso Gonzaguinha, e lá pelas tantas, enxertou um la-la-ra no final para poder encerrar a sua amnésica interpretação. Foi tragicômico.

Exceção: uma tal de Pitty, roqueira tatuada, avoada e esfuziante no palco, "garrou" do microfone e desembuchou um Deus lhe Pague (Chico) impressionante, acompanhado de guitarras sibilantes e uma bateria tresloucada! Não fugiu ao ritmo original da canção, mas deu a ela uma nova textura, completamente diversa da habitual, mas muito curiosa e interessante. Os versos sufocantes do Chico encontraram nova guarida nesta inédita roupagem rock'n'roll para a densa e intensa Deus lhe Pague. Detalhe: interpretação irrepreensível no que tange afinação e conhecimento da letra. Não errou uma sílaba sequer.

É, aqueles tempos não voltam mais, tampouco aqueles gênios que burlavam a inteligência tosca da censura e diziam o que tinha de ser dito, mas sem dizer nada além do que diziam. Hoje, para muitos, é árdua tarefa até mesmo tornar compreensível o óbvio ululante.

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