domingo, 4 de fevereiro de 2007

JOÃO






Invejar-me-á, de morte, quem já o leu, pois jamais o fará novamente como o fez pela vez primeira - prazer único do qual fruirei lentamente a contar de já. Aos que ainda não o leram, façam-no o quanto antes para entenderem do que lhes falo. Brindo-lhes com indagações Drummonianas que intentam deslindar, com relativo logro de êxito, o grande (Sertão: Veredas) João Guimarães Rosa.


UM CHAMADO JOÃO

Carlos Drummond de Andrade

João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico
disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado
João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de
boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como
flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora,
falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva,
fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem
desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites
prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por
trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra,
sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o
reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é
esse?

E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra
questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo
era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que
se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor
guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se
João existiu
de se pegar.

(publicado originalmente no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa)

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