sábado, 29 de março de 2008

MAR E LUA

No CD Player do meu carro, sob veementes protestos de toda a sorte de caroneiros “azarados”, toca exaustiva e insistentemente (repeat/on) a belíssima canção Mar e Lua, do insólito, posto que gênio, Francisco Buarque de Hollanda. Elegi-a, no momento, a minha canção preferida do compositor (como outrora já o foram Apesar de Você, Cálice, Todo o Sentimento, Pedaço de Mim…), cujo mandato vislumbro longo e exitoso, e sujeito a sucessivas reeleições.

Quase incógnita em meio ao magnífico cancioneiro buarqueano - no entanto, de igual brilho -, Mar e Lua é uma daquelas coisas intrigantes e instigantes que tão-somente o Chico é capaz de produzir. É uma canção cuja letra, embalada por uma melancólica, embora admirável, melodia, tocava-me enigmaticamente sem fazer menção de me contar por quê. E este sutil hermetismo moveu-me sofregamente em busca de um deslinde que, supunha eu, estivesse oculto nas entrelinhas da poesia, passeando sorrateiramente entre os versos e estrofes, incólume e despercebido.

Atirei-me ao pote com a sede de três Atacamas, saciando-a no site oficial do compositor. Lá, em Nota sobre Mar e Lua, submergi e, extasiado, voltei à tona com a resposta:

“Esta música, segundo o próprio Chico, ele a fez baseando-se numa crônica que
tinha lido (pelo que a letra parece mostrar, essa crônica devia versar sobre o
suicídio de duas moças do interior, que se amavam). Um detalhe importante aí é o
próprio título (mar: masculino; e lua: feminino), que configura não só o
contraste na relação amorosa das duas moças como também deixa transparecer a
atração tão forte dessa relação, comparável à do mar em relação à lua (e
vice-versa).”

Por Gilberto de Carvalho

Decifrado o enigma, apaixonei-me perdidamente pela canção que reputo das mais sensíveis e libertárias deste mestre da poesia musicada.

Mar e Lua

Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar

E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E à beira-mar.

Entenderam, agora, o porquê da imagem, no topo do post?

Preconceito é ignorância. E cabe também à arte combatê-lo.

Um comentário:

Sergio disse...

Perfeitas! a qualidade da poesia, a justificativa da escolha. A coragem e a postura de vanguarda do blogueiro.