Chico Buarque de Hollanda. O que poderia eu, um mero fã
incondicional da lírica buarqueana, dizer a respeito deste monstro da Música
Popular Brasileira que já não tenha sido dito antes com muito mais propriedade?
Estou ciente de que, ao encarar tal desafio, corro o sério risco de parir mais
um belo lugar-comum a respeito do compositor carioca, mas, dada a minha
admiração pelo artista, bem como minha casmurrice congênita, resolvi considerar
o risco e assumir as consequências, que podem ser devastadoras – ou não.
Mas, de abrupto, eis que me surge, vindo de lá sei onde, uma
ideia que me soa razoavelmente original a respeito do artista: as mulheres de
Chico? Não! Seria um clichê imperdoável. Quero falar, agora, da “mulher Chico”.
Explique-se!
Explico.
Chico, como a imensa maioria de seus admiradores já sabe,
canta maravilhosamente a alma feminina com uma delicadeza desconcertante. Tais
canções estão invariavelmente arroladas entre as preferidas dos fãs. Em meio a
tantas e excelentes canções, podemos citar Mulheres de Atenas, cuja ironia, sob
a forma de um acintoso “mirem-se no exemplo...”, por vezes passou completamente
despercebida, a ponto de a canção ser considerada por muitos uma ode à
submissão feminina, quando intentava dizer exatamente o contrário; Geni e o
Zepelim, a história da menina pura e bondosa, de vida nem um pouco fácil, cujo
destino transformou em "boa de apanhar e boa de cuspir", em que pese
o sacrifício a que se submetera para salvar aqueles que lhe batem e cospem; Mar
e Lua, uma das mais belas metáforas do amor irreprimível entre duas mulheres,
tal qual a atração natural que existe entre o mar e a lua; Carolina, em cujos
“olhos fundos guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo” talvez por ser a mais
notória canção que Chico não gosta, isso confessado pelo próprio; ou As Minhas
Meninas, uma rasgada declaração de amor e ciúmes juvenil que o compositor nutre
por suas filhas, suas meninas, só suas, do seu coração.
Belíssimas canções em que Chico Buarque toca a alma
feminina, desvelando seus segredos, temores, amores e delícias. Mas – e o “mas”
é que é o mote desta ladainha toda – e quando o poeta revela a sua própria alma
feminina, quando Chico é a mulher que canta? E quando a sensibilidade do
artista não se refere à mulher alheia, a mulher de fora, mas a si mesmo, a
mulher de dentro, a sua porção feminina? Condição essa que a maioria nega por
não condizer com sua imagem social, por preconceito ou por medo, mas que Chico
exalta com todas as cores e transforma em arte de primeira grandeza.
As canções de Chico compostas na voz feminina são
simplesmente espetaculares. Nelas, Chico não fala simplesmente sobre a alma
feminina, Chico é a mulher das suas canções, é a sua alma feminina retratada e
desnudada em seus versos. Comentemos algumas delas, todas da minha predileção.
Não foram poucas as canções em que Chico explora o
angustiante cenário da separação. Em Olhos nos Olhos, Chico é a mulher
abandonada e, de uma certa forma, resignada.
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Mas essa mulher descobre em si uma força que não acreditava
possuir e supera o suplício do abandono, descobrindo-se uma nova mulher,
resolvendo-se consigo mesma, resgatando a sua imagem e sua autoestima.
Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
A plena redenção feminina, inclusive com uma leve pitada de
ironia (quantos homens me amaram/bem mais e melhor que você) é magnificamente
ilustrada em Olhos nos Olhos.
Mas já que o tema é separação, aproveitemos o vento a favor
e falemos sobre a desesperada Atrás da Porta.
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Agora, Chico é a mulher que ama demais, desesperadamente,
arrebatadamente. Chico é a mulher que pressente o desfecho inevitável que a
todo custo empreende evitar, em direta oposição a mulher obediente de Olhos nos
Olhos.
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
Curiosamente, em Olhos nos Olhos e em Atrás da Porta, a
iniciativa do rompimento foi da figura masculina.
Mas Chico Buarque também sabe ser a mulher submissa, “feita
apenas para amar, para sofrer pelo seu amor e pra ser só perdão”, como já
cantou o poetinha Vinícius de Moraes. E o ápice desta sua faceta é Com açúcar,
com Afeto, a primeira canção em que Chico, de fato, assume a posição feminina,
em 1966.
Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Nesta, por assim dizer, crônica musical, Chico é a mulher
chorosa, submissa, que aceita os desaforos e imposturas de um malandro
autêntico, que sai todos os dias para trabalhar com a promessa de que vai
voltar em tempo. Mas a noite é comprida, e a promessa nunca é cumprida.
Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non tropo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
E, por fim, quando a noite lhe cansa, ele retorna,
maltrapilho e maltratado, e ela o perdoa. Por amor ou por sujeição, sabe-se lá.
O que ela sabe é que o quer por perto. Ela vai esquentar seu prato, dá um beijo
em seu retrato e abre-lhe os braços com doçura e um certo alívio.
Até que, um dia, Chico cansa de sofrer. Chico, então, é a
mulher que, impiedosamente, perdoa o homem por traí-lo. Em Mil Perdões, ela
trai, vai à forra, e ele surge como o único responsável pela traição.
Te perdoo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdoo
Por pedires perdão
Por me amares demais
A inversão de causa e efeito promovida por Chico nesta
canção é inusitada e libertária. A mulher que trai perdoa o marido traído por
este lhe fazer trair. É paradoxal, mas é real. E a traição parece irromper de
um cenário de opressão e ciúme controlador em que ela se encontra inserida,
descambando muitas vezes em violência. O assédio doentio, as agressões e a
obsessão por controlar os passos da mulher fazem-na trair despudoradamente.
Te perdoo
Te perdoo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdoo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Chico dá a dica: controlar é perder; libertar é ter pra
sempre.
Quatro contextualizações sob a ótica feminina: a mulher
resiliente (Olhos nos Olhos), a mulher inconformada (Atrás da Porta), a mulher
submissa (Com Açúcar, com Afeto) e a mulher vingativa (Mil Perdões). Quatro
mulheres reais vividas por Chico Buarque de Hollanda com a intensidade e a
autenticidade de uma alma definitivamente feminina, com todas as suas dores,
amores, cores e rancores. Dessas coisas que só mesmo esse cara poderia nos
proporcionar com tanta sensibilidade e delicadeza.
Chico Buarque de Hollanda é, indiscutivelmente, a maior
compositora brasileira de todos os tempos.
2 comentários:
Parafraseando Simone de Beauvoir, ninguém nasce mulher, torna-se mulher.
Essa figura feminina está ultrapassada. A mulher de hoje não quer mais viver em função do homem.
Eu e muitas mulheres não nos identificamos com essa submissão e com essa passividade exposta nas letras (sem dúvida, maravilhosas) de Chico Buarque. Elas nos incomodam, chegam a nos irritar!
Temos raiva desse sujeito mau-caráter, não o amamos mais. Queremos ser livres, independentes e felizes. Se for para estar ao lado de alguém, que esse relacionamento seja prazeroso.
Não queremos mais sofrer por amor desse jeito doentio, temos uma auto-estima maior do que a das nossas avós!
Aliás, os homens também sofrem por amor, e muito! Essa "alma feminina" na verdade não existe. O que existem são comportamentos que são aprendidos.
Chico é de fato um grande compositor, mas a mulher retratada nas suas canções não representa mais a mulher brasileira de 2015.
O brigado pelo comentário, Fernanda. Apenas atentemos para o fato de que as composições referidas nesta postagem carregam a marca indelével de suas respectivas épocas. Observe:
Em 1966 (!!!), Chico compõe, a pedido de Nara Leão, a canção Com Açúcar, Com Afeto, cujo mote “mulher submissa” foi sugerido pela própria cantora. Mais tarde, Chico viria a gravar a canção no segundo disco de sua carreira, em 1967. Convenhamos que, para a época, um homem compor e gravar uma canção na voz feminina já é um bocado revolucionário!
Atrás da Porta é de 1972. Nela, a mulher submissa dá lugar à mulher que não aceita a separação, que luta – seja lá com que armas – pelo que quer. A mulher de 66 já não é mais a mesma de 72.
Em Olhos nos Olhos, de 1976, a mulher, além de superar com muita maturidade e autossuficiência a separação, dá uma guinada esplêndida em sua vida, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. A mulher de Olhos nos Olhos é o protótipo da mulher do futuro. Alforriada, ela rejeita novos grilhões e é feliz à sua maneira, a despeito das convenções hipócritas que a sociedade de então a impunha.
Por fim, em 1983, Chico compõe Mil Perdões. "Te perdoo por te trair" é o brado mais alto da libertação feminina. A opressão machista, nesta canção, recebeu a resposta merecida. A mulher desrespeitada se eleva e reage. Isso, em 1983!
É óbvio que a mulher retratada nas canções acima não representa, de forma alguma, a mulher de 2015! Todas elas foram contextualizadas em suas respectivas épocas. Todavia, notem que a evolução das personagens femininas de Chico acompanha a cronologia de suas canções. E, mesmo inseridas, cada qual em seu cenário, havia um quê de feminismo em cada uma delas.
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