sábado, 30 de abril de 2005

DOM QUIXOTE

Todos os dias, religiosamente, entrava na livraria para vê-la. Era o desjejum de sua alma. Dirigia-se, nervosíssimo, desajeitadamente à mesma prateleira de livros e a esperava ansiosamente. Ela sempre vinha, jamais falhara. Era uma questão de segundos. Também pudera, era a única vendedora a trabalhar naquela pequena livraria. Sempre solícita e prestimosa – e sempre linda! Observava-a através da vitrine antes de entrar.

- Com licença, posso ajudá-lo? – indagava-lhe com uma suavidade musical que o inebriava – e o apavorava!

- Obrigado, estou só olhando. – respondia sem ao menos lhe dirigir o olhar, e saía, cheio de si, transbordante de alegria e satisfação. Assim começavam seus dias felizes.

Cada dia que a via, seu amor platônico só fazia crescer.

Numa dessas manhãs, algo terrível aconteceu. Sentiu, neste dia, o sangue congelar em suas veias e poderia jurar que seu coração, por alguns segundos, parara de bater. Ao tomar coragem, finalmente, de encará-la, seus olhos erradios, vagueando por toda aquela linda figura, objeto do seu infinito amor, antes de mirarem os dela, verificaram – e antes não a tivessem percebido – uma desalentadora aliança no anular de sua mão esquerda.

- Com licença, posso ajudá-lo em algo? – perguntou-lhe com a sua habitual simpatia, sorrindo.

- Pode sim. – disse-lhe, agora frio e resoluto – Dê-me o livro mais grosso de sua livraria, e o de leitura mais intrincada e densa dentre todos, que poucos já leram e pouquíssimos conseguiriam ler.

- Claro, senhor. Aqui está. Presente?

- Sim, presente.

Ela embrulhou o pesado volume com toda delicadeza e, enquanto o fazia, ele fitava aquela triste aliança naquela pequenina mãozinha, dançando e deslizando por sobre o embrulho, refletindo um brilho intenso em seu semblante taciturno – um brilho que o torturava cruelmente.

Ao receber o embrulho, de pronto, devolveu-lhe.

- Aceite este meu presente, por favor. Leia-o com a maior brevidade possível e, a cada página finda, uma pequena fração do meu amor por você morrerá. Ou não o leia jamais, mas guarde-o consigo, com muito zelo, sem desembrulhá-lo.

Pagou, virou-se e saiu para nunca mais.

Um comentário:

Anonymous disse...

Muito bom cabecinha!Mas me diga....qual a parte disso é verdade?